O neoliberal Bolsa Família
03 de novembro de 2013 |
2h 09
Suely Caldas - O Estado de S.Paulo
A História se encarrega de juntar
ideias e fatos, fazer justiça, costurar acontecimentos e narrar os fatos reais
que a política tentou embaralhar, falsear e, por vezes, negar. Só que as duas -
a História e a política - protagonizam tempos diferentes. Porque trabalha com o
momento presente, a política não tem compromisso com a verdade e se aproveita
do mais oportunista apelo do momento. A História trabalha com tempo mais longo,
seu papel é recolocar em seus lugares ideias e fatos que a política falseou no
passado e contar como se passou a verdade. Entre o que o Partido dos
Trabalhadores (PT) pregou antes e praticou depois que assumiu o poder, passou
pouco mais de uma década. Tempo curto, do ponto de vista da História, mas a
metamorfose foi tão rápida, flagrante e abrupta que precipitou a percepção da
verdade. O fato mais conhecido desse enredo foi a súbita apropriação da
política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso (excomungada e rotulada
pelo PT de neoliberal) pelo ex-presidente Lula desde o primeiro dia de seu
governo, em 2003. Mas há outros, e vou tratar aqui de três: a privatização, a
autonomia do Banco Central (BC) e o programa Bolsa Família. Os três foram
gerados em ventres liberais, experimentados e aprovados mundo afora e viraram
políticas universais de Estado em países democráticos. Começando pelo programa
Bolsa Família, que acaba de completar dez anos e foi comemorado pelo PT, por
Lula e Dilma Rousseff com festa eleitoral. Quem ouve Lula falar imagina que
partiram de sua cabeça a concepção e a criação do programa. E com a sua marca:
nunca antes experimentado no mundo. O senador petista Eduardo Suplicy conhece e
poderia contar ao amigo Lula sobre sua origem e autoria. Nada nasce de um dia
para o outro. A ideia de criar programas de transferência de renda nasceu nos
anos 1960/1970 e seu autor foi o economista norte-americano Milton Friedman, o
mais talentoso formulador do liberalismo econômico do século passado, criador
da teoria monetarista e responsável pelo ideário liberal dos Chicago Boys -
referência pejorativa da esquerda da época aos alunos seguidores de Friedman na
Universidade de Chicago, onde ele lecionou por 30 anos. A partir dos anos 80, o
Banco Mundial passou a recomendar programas de transferência de renda aos
países pobres e em desenvolvimento, entre eles o Brasil. Por aqui, os conselhos
do Banco Mundial foram rechaçados pela esquerda (inclusive o PT), tratados como
maldição. "Não se combate pobreza com esmola", indignavam-se os
petistas. Contra essa maré sempre remou o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que
desde os anos 80 defendia um programa de renda mínima universal - pobres e não
pobres - e citava o liberal Milton Friedman em seus argumentos. Coerente,
Suplicy apresentou o projeto ao Senado em 1991, que foi sancionado por Lula em
2004, mas nunca executado. Também em 1991 o economista da PUC-Rio José Marcio
Camargo escreveu o texto Pobreza e garantia de renda mínima, apoiando o projeto
de Suplicy, mas fechando o foco só nos mais pobres e acrescentando duas
sugestões: excluir os idosos e restringir o acesso às famílias com crianças
matriculadas na escola. A ideia foi ganhando forma no início dos anos 90, em
discussões de um grupo de economistas do Rio de Janeiro, entre eles Ricardo
Paes de Barros, André Urani, Edward Amadeo e Ricardo Henriques (que no governo
Lula ajudou a formatar o cadastro único), além de Camargo. Curiosamente, coube
a um tucano (o prefeito de Campinas José Roberto Magalhães Teixeira) e a um
petista (o governador de Brasília Cristovam Buarque, hoje no PDT) a primeira
iniciativa - em 1995 - de criar um programa de transferência de renda no
Brasil, que recebeu o nome de Bolsa Escola. Em alcance nacional, foi o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quem primeiro implantou o programa -
também com o nome de Bolsa Escola -, em 1998, focalizando nos mais pobres e
criando duas exigências para as famílias terem acesso: comprovada frequência na
escola e carteira de vacinação atualizada da criança. Na época, o PT foi contra
e chamava o programa de "Bolsa Esmola". Em sua gestão, FHC também
criou outros programas sociais, entre eles o Vale Gás e o Bolsa Alimentação. O
mérito de Lula foi unificar cadastros e concentrar todos os programas sociais
de FHC em um único, que chamou de Bolsa Família. Lula e o PT não criaram nada e
ainda abandonaram o Fome Zero - que conceberam para concorrer com o Bolsa
Escola - e se apropriaram do programa que combateram em 1998. O mérito maior de
Lula, no entanto, foi apostar no êxito do Bolsa Família como meio para reduzir
a pobreza. Nos últimos dez anos, o número de famílias beneficiadas mais do que
dobrou, saltando de 5 milhões, do fim do mandato de FHC, para 13,8 milhões,
atualmente. E ajudou muito a tirar milhões de brasileiros da extrema pobreza e
outros milhões a ascenderem à classe média. Ao criar agora o Brasil sem
Miséria, a meta de Dilma Rousseff é erradicar a miséria no País. A mesma meta
que tinha o ultraliberal Milton Friedman quando concebeu os programas de
transferência de renda há cinco décadas. É assim a História. Privatização e BC. Diferentemente do Bolsa Família, a adesão de Lula, Dilma e do PT à
privatização e à autonomia do Banco Central é envergonhada e incompleta. Menos
ideológico do que Dilma, Lula respeitou o acordo feito com Henrique Meirelles e
lhe deu autonomia de decisão no BC em seus oito anos de gestão. Mas na semana
passada fez coro ao PT manifestando-se contra a autonomia em lei - ou porque
não quer abrir mão do poder ou porque imagina usar isso como bandeira
eleitoral. Mais concentradora e ideológica, Dilma deu sucessivas mostras de que
não pretende abrir mão da palavra final em política monetária. E, além de não
ajudar, exagerando nos gastos (o déficit fiscal de setembro ultrapassou R$ 10
bilhões), deixa para a direção do Banco Central a solitária e inglória tarefa
de controlar a inflação sem liberdade para manejar suas armas. Quanto à
privatização, os dois resistiram o quanto puderam. Lula por oportunismo
político-eleitoral, Dilma por convicção ideológica. Mas ela foi obrigada a
recuar por motivo simples e pragmático: precisa do capital privado para
estimular crescimento e desenvolvimento.
Gostei destes assuntos, que vem relatando em seu blog, que as vezes para nós é tão polêmico. Mas com sua visão emancipadora da realidade política e social, somos capazes de perceber a ideologia que está por trás deste programa bolsa família.
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